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10.5.18

"Deus criou os alimentos e Diabo os temperos."

A frase é de James Joyce, que confesso não fazer ideia de quem seja, mas aprendi a mesma num livro que me é muito querido, que "vive" comigo desde sempre e que culpo em grande parte pela minha paixão por cozinhar... o Grande PANTAGRUEL.

Bertha Rosa Limpo

bertha Rosa Limpo


É por pequeninos encontros e descobertas como a desta frase que tenho um fascínio, quase uma ligação familiar, com este livro de culinária. A seguir aos livros dos clássicos da Disney, como a Branca de Neve ou a Cinderela, e dos livros cor de rosa com histórias de coelhinhos que não me lembro de como se chamavam mas que eu repetia a leitura até à exaustão, o Pantagruel foi dos meus primeiros livros. Achava graça àqueles dois livros, enfiados numa capa de cartão com fotos em sepia de pratos, rosas feitas com tomate ou cenouras, acepipes meio desfocados. Deve-me ter intrigado ao ínicio e achando-os diferentes de todos os outros aborrecidos livros de capa castanha vermelha dos Circulo de Leitores, comecei a desvendá-los.

Nem faço ideia de que idade teria mas lembro perfeitamente de gostar de os ler sem regra. Num dia abria uma página e por lá me perdia, noutro apetecia-me fazer um bolo e percorria o índice à procura dum que me apetecesse. Invariavelmente acontecia-me ficar só pela leitura. Ou porque me perdia completamente nas suas páginas com dicas e histórias curiosas sobre cozinha ou porque, na maioria das vezes, a lista de ingredientes era tão grande que perdia a vontade de replicar as receitas. Mesmo quando comecei a ter idade, e autorização, para usar os bicos do fogão raramente fazia uma receita do volume maior do Pantagruel - o dos Salgados. Achava sempre tudo muito elaborado e as receitas falavam muitas vezes de ingredientes que eu nem tinha ouvido falar quanto mais alguma vez ter-me cruzado com eles na mercearia. Certamente, se eu os encontrasse, também seriam tão fora do nosso orçamento familiar que dificilmente a minha mãe alinharia em me os comprar. Não era muito diferente no volume menor - o dos doces. Apesar, de os ingredientes serem mais familiares para mim e muitos deles até fazerem parte da nossa dispensa lá em casa, a Bertha (autora do livro) punha sempre lá pelo meio uns utensílios, como peneiras, que me travavam avançar nas receitas, achando eu que faria toda a diferença se não os usasse. Ainda assim, há algumas páginas do, agora MEU, Pantagruel, que estão meladas ou sujas de ingredientes. Manchas essas que são os marcadores de página das receitas que cheguei a fazer.

Estamos a falar dum tempo que já vai, pelo menos, com 15 anos de distância, e agora aqui ao longe dessa altura chego à conclusão que não só o Pantagruel aguçou a minha vocação para a cozinha como moldou a minha relação com ela. Ainda hoje sou a pior pessoa para seguir receitas, o que não seria de esperar sendo que o Pantagruel é um imenso livro de receitas. Porém, como sempre me senti limitada nas receitas que podia seguir, muitas vezes acaba na cozinha a inventar comida, inspirada no Pantagruel, mas com apenas os ingredientes que havia lá na nossa cozinha. Tal e qual como hoje na minha cozinha. A maioria das receitas que crio nascem do que há cá por casa e depois há umas dez no ano que surgem de inspiração em alimentos que vejo nas praças, supermercados, peixarias... ou, claro, resultantes de técnicas novas que aprendo no Masterchef Australia. Eu nem vos sei dizer a quantidade de receitas (as de outras pessoas) que já guardei nesta vida mas contam-se nos dedos de uma mão as que repliquei. Ou seja, eu sou a apaixonada de cozinha que detesta receber livros de receitas de presente!

Outro agradecimento que faço a este livro tão importante na minha vida é o não olhar a preços de comida. Há pessoas que ambicionam o tal carro, poder desfrutar duma viagem com pulseira no braço ao México, comprar um anel de diamantes, comprar roupa até cansar... Eu? Das maiores concretizações da minha vida é poder ir comprar alimentos sem olhar a preços e escolhê-los pela qualidade. É um prazer imenso e uma sensação de liberdade que me emociona com alguma facilidade. Apesar de nunca ter havido falta de comida em nossa casa, quando eu era pequena, a variedade era muito pouca e sei que a minha mãe fazia as compras do mês com muita cabeça e com muitas contas à mistura. Safava-nos as hortas e capoeiras dos avós e as suas árvores de fruta... E nesse aspecto era uma enorme priveligiada. A minha educação incutiu em mim uma cultura de qualidade alimentar, em oposição a quantidade, e o Pantagruel uma vontade de experimentar ingredientes diferentes, ainda que muitas vezes caros ou de díficil acesso. Atenção que isto não significa que vou à procura do caro só para mostrar que posso comprar... O que quero dizer é que, fugindo aos locais que nos põem no preço o valor do alimento, mais o valor da "moda", mais o valor da "chiqueza" do espaço (tipo mercearias das modernas, o el corte ingles, o celeiro, a etiqueta "bio" nos supermercados), eu compro em locais onde sei que os alimentos são de qualidade e que o preço que estou a pagar por eles é só o justo. Daí raramente olhar ao preço. Apetece-me uma posta de cherne? Compro. "Quanto pagaste?" perguntam. Respondo não faço ideia, a menos que tenha sido a única coisa que comprei na peixaria. Era mais natural que me perguntassem: "Soube-te bem? Estava fresquinho?" Eu sei que é o dinheiro que move o nosso mundo mas no meu mundo o dinheiro não escolhe o que eu como... Essa é uma escolha minha e do que me apetece no momento. Mesmo há uns anos quando o plafon para comida era menor eu dava sempre preferência à qualidade de uma laranjas toscas na praça, ainda que uns cêntimos mais caras, a umas enormes e enceradas a tuta e meia no supermercado.

Vêm?! Eu disse que tinha uma relação quase extra corpo com este livro... Põem-me a falar como se fosse a bíblia (blafémia à parte). 

E a Bertha Rosa-Limpo? Dá para perceber porque conhecia tantos ingredientes... à quantidade de "óiros" que ostenta na foto do livro, comprar verdadeiro açafrão, por 40 contos o quilo não deveria ser um problema. 

Bertha Rosa limpo

O, agora, meu Pantagruel herdado das prateleiras dos livros da minha mãe, há uns meses, é uma versão assinada pela sua autora. Bertha, a senhora que sabia tudo de cozinha mas que podia ter aprendido comigo umas coisas sobre maquilhagem. 

Das poucas coisas que possuo que quero guardar para a vida.

Quem conhece o Pantagruel?

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